(matéria de Maurício Horta, publicada na Revista AU)
Escritório experimental chileno desenvolve para a segunda maior favela paulistana um modelo de conjunto habitacional popular que mantém a vida comunitária e permite que a autoconstrução seja valorizada
Às margens da ainda inexistente Avenida Perimetral, que até a Copa de 2014 vai contornar os limites entre a favela de Paraisópolis e o Morumbi e, assim, ligar o estádio Cícero Pompeu de Toledo à Marginal Pinheiros, um descampado de meio hectare antes ocupado por autoconstruções deve dar espaço a uma tentativa de transformar o "puxadinho" num método construtivo regular, seguro e lucrativo para seus moradores.
Quatro blocos de oito andares projetados pelo escritório chileno Elemental, associado à Pontifícia Universidade Católica do Chile, serpentearão no terreno triangular em declive para abrigar 150 famílias. Mas há um detalhe: elas devem ocupá-los quando sua construção ainda estiver pela metade. Em vez de uma casa completa, porém pequena e de baixo padrão, o escritório propõe construir a metade de uma casa boa, com uma estrutura-base pronta para o proprietário ampliá-la e valorizá-la.
O projeto é um dos seis a serem apresentados na 4a Bienal de Arquitetura de Roterdã, Holanda, com o objetivo de testar em Paraisópolis estratégias e tecnologias para a integração de assentamentos informais no tecido urbano formal. O tema da Bienal é Cidade Aberta - Desenhando a Coexistência, e deverá ser aberta em 24 de setembro.
EXPANSÃO REGULAR "Encontramos no Chile o seguinte padrão constante: quando o dinheiro não dá, (o governo) entrega casas pequenas, de no máximo 50 m². Depois todas as famílias ampliam a casa para uns 80 m²", diz o arquiteto Fernando García-Huidobro, um dos responsáveis pelo projeto de Paraisópolis. "O que importa não é o tamanho da casa entregue, mas sim o tamanho final que ela atingirá a partir dos acréscimos feitos pelo morador."
Quando esses acréscimos são feitos de forma irregular, não apenas a estrutura da casa pode ser comprometida como também seu entorno é desvalorizado. A tese do Elemental é que o contrário acontece se for construída uma boa estrutura-base, preparada para acomodar acréscimos posteriores. Assim, completar a casa e melhorar seu acabamento conforme a família economiza dinheiro torna-se um investimento.
O primeiro conjunto habitacional do escritório foi executado em 2004 em Iquique, na desértica costa norte chilena (AU 172). Segundo García-Huidobro, suas 93 casas já dobraram de valor nesses cinco anos. "Foi um negócio muito bom para as famílias, que ampliaram suas casas algumas com muito bom nível, outras com um padrão mais intermediário", diz.
PILARES DO PROJETO O primeiro princípio do projeto é manter as redes sociais existentes, sem o deslocamento das famílias para fora de Paraisópolis. Neste ponto, há uma diferença essencial entre o projeto paulistano e outros executados no Chile.
Com 60 mil habitantes, Paraisópolis é tremendamente maior que os assentamentos chilenos, que em geral não passam de 500 pessoas. Em vez de servir apenas de dormitório, o bairro funciona como uma pequena cidade em si, com um grande potencial econômico e oportunidades de emprego local. Por outro lado, o exíguo terreno delimitado pela Prefeitura exigiu uma nova tipologia verticalizada.
No Chile o projeto foi uma sucessão linear de sobrados geminados unifamiliares. Já em Paraisópolis, são blocos de oito andares com apartamentos dúplex ou tríplex. No nível da avenida perimetral estão previstos estabelecimentos comerciais, inexistentes no projeto chileno, para manter as atividades econômicas dos moradores.
A inserção urbana é o segundo princípio. Essas lojas fazem a interface entre o conjunto habitacional e a avenida perimetral (e, portanto, com o restante da cidade). Já atrás dos blocos, uma praça interna situada dois pavimentos acima do nível da rua centraliza a circulação do conjunto. As unidades se comunicam por escadas e corredores externos que se voltam a esse pátio como em construções coloniais espanholas. Isso permite, por exemplo, que crianças possam brincar sob o olhar dos moradores do conjunto, e distantes da avenida de grande fluxo. Dessa forma se mantém o forte convívio comunitário anteriormente estabelecido pela ambiguidade entre espaços públicos e privados causada pela proximidade e permeabilidade de autoconstruções em ocupações irregulares.
Outra orientação é construir somente a parte que traria mais dificuldade para ser executada pelos próprios moradores: paredes estruturais e lajes de concreto pré-fabricado, a cozinha, um bom banheiro e escadas. Assim, a família pode mudar-se para uma casa com boa estrutura e equipamentos, embora pequena, até ter dinheiro para expandi-la. Nas unidades de dois pavimentos, a área inicial de 44,6 m² pode crescer até 63,90 m². Nas de três, a área máxima é de 83,74 m².
Para evitar a deterioração típica de expansões autoconstruídas, o projeto já prevê o cenário final da casa. No térreo, adjacente à sala de 9 m² voltada para o pátio, há um terraço de mesma área, voltado para a rua. Fechando-o, o tamanho da sala é dobrado. No piso superior, a laje pode ser estendida para adicionar-se um segundo quarto. Nas unidades com um terceiro piso, podem ser acrescentados mais dois cômodos. Racionalizando a autoconstrução, ela se torna mais econômica, rápida e segura.
O último pilar do projeto é a ascensão social. Embora tenham um custo baixo, os apartamentos são construídos numa estrutura que traz em si o DNA de classe média. Por exemplo, o banheiro está distante da sala de estar, as salas têm sacadas individuais, a cozinha tem uma área de serviço, a ventilação é cruzada e os dormitórios são grandes o suficiente para que as camas tenham acesso pelos dois lados e ainda sobre espaço para um armário. Uma ideia necessária na época em que mais pessoas migraram da pobreza para a classe média no Brasil.